Ela me perguntou se eu queria revisitar aquele conto e eu, surpreendentemente - para ela -, disse "não".
Mentira, eu disse "agora não", só pra fingir que eu vou querer falar novamente sobre aquilo em algum momento, como se eu já não vivesse aquele conto todos os dias, full time.
Então, fingindo resignação, transferiu a ideia pra um baú cheio de coisas.
Um baú com coisas tipo, uma flor, um disco de vinil, um frasco de perfume vazio, um brinquedo quebrado e um pedaço de tecido que era igual ao do vestido que Natália tinha usado no dia anterior. Lindo, por sinal.
A intenção era que eu representasse minha vida, no momento atual, através daqueles objetos. Eu podia fazer uma "instalação" se eu quisesse, mas naquele dia, eu não quis. Achei que era abstração demais e a paciência, impaciente, saiu correndo há muito tempo. Virou aquele pontinho na linha do horizonte, que a gente aperta o olho e reforça as marcas de expressão pra poder enxergar.
Impaciente, peguei uma caixa azul marinho, um cubo exato e disse "é isso".
- Descreva a sua vida, então, como se eu não tivesse enxergando nada.
- Uma caixa azul marinho, mas que a gente vai fingir que é preta, porque eu prefiro.
- Você não quer pintá-la de preto, então?
- Não, dá muito trabalho. Vamos fingir, que é mais prático.
- Sua vida vai ficar vazia?
- ...
- Se você pudesse preenchê-la, o que teria aí dentro?
- Feijõezinhos de todos os sabores.
Com uma caixinha de massa de modelar em mãos, ela diz: vamos preenchê-la?
Usei verde, laranja, amarelo, branco com laranja e branco com dois tons de rosa.
- De que são esses feijões?
- Heineken, tequila sunrise, carambola, sushi de salmão e bacon.
- Quando você come o feijão da carambola, por exemplo, você sente aquela textura da fruta e o caldinho escorrendo pela sua boca?
- Acho que não.
- Interessante, Rafael. Sua vida é uma caixa azul marinho, que a gente finge que é preta, cheia de feijões que não tem gosto de feijões, mas sim, de bebidas e comidas que não tem formato, nem textura real.
O que é autêntico aí?
O que é autêntico aí?
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